terça-feira, 10 de março de 2009

Prólogo (de uma história ainda sem nome)

Pétalas amadurecidas em tintas de um fruto doce e carnudo raiam num desabrochar lento e aprazível nas trevas que já pouco preenchem este espaço. Espreguiça-se num sorriso. Primeiro a mão, depois a garra; cada feitio em seu lugar. Deixa-se agora abandonar o seu leito, completamente preparada para enfrentar um novo dia. Eu continuo enrolado nos lençóis, com um olho meio aberto e outro semi fechado.

As intermináveis perninhas solares saltitam por entre as fissuras da persiana norte não totalmente cerrada. Uma fileira delas acerta-me no olho e impede que faça da almofada o meu sustento. Sou obrigado a piscar os olhos para domesticar a claridade. Elas continuam vibrantes – como nada se tivesse passado – e empurram-se umas às outras nos jogos da fila indiana. As enfadadas insinuam-se à íris da bela orquídea, estão ternas e apaixonadas; imediatamente, entre desejos, desfazem-se em cristal.(Nestas alturas não me importava de ser mulher). Orquídea, num esboço prometedor, alegra-se a franzir os olhos, por alguns momentos, até se habituar à explosão matinal. Uma página em branco espera-a e ela floreia-a devagarinho. Tão serenamente como eu a vou apreciando.

Ao sentir-se preparada, iça o plástico rendilhado que tornava o quarto imune ao espaço e ao tempo e abre a janela para que a boca do mundo se encoste aos seus ouvidos. Seguidamente faz o mesmo à porta – janela que se situa do lado este do quarto, dando acesso a uma varanda.

Agora é que eu tenho mesmo que me levantar ou ganho a fama de preguiçoso. Com isto ganho um beijo e uns bons dias. Assim, até sabe bem acordar.

A cama desfeita é revelada e, num acto de vergonha, recompomo-la, não seja a nossa intimidade proclamada indesejavelmente.

Os lençóis purpúreos são envolvidos pelo negrume do edredão, onde se depositam duas almofadas também vestidas com um vermelho vivo.

A madeira negra compõe a cama e as mesinhas de cabeceira que a acompanham. Estas encontram-se encostadas à parede sul, para que a flor possa contemplar um novo dia sem perder o norte. Eu nem com a bússola me encontro.

Com a pálida camisa de seda dirige-se à casa de banho contígua a esta divisão. Eu aproveito para vestir o meu fato de treino azul-escuro ao mesmo tempo que imagino os inalteráveis e quotidianos passos de Ishtar. Abre a torneira metalizada deixando cair uns fios de água; diamantes da sobrevivência fundem-se no lavatório do luxo humano. Coloca o bem e o mal por baixo da nascente principesca e refresca a sua face adormecida. Repete esta série mais algumas vezes até ter a cara completamente límpida, a água benta do bem-estar. Na sua última lavagem demora-se um pouco mais a mirar o espelho sinuoso.

Foca-se nos seus olhos arbóreos e de retoques celestes, uns olhos que a toda a gente encanta. Que a mim me fascinam. Nesse desvelo vê a extensão dos dias, os mesmos dias que a tornaram no ser agora reverberado. Toca nos cabelos encaracolados e cheira-os na tentativa de retornar às memórias. Imito o seu gesto, mas assusto-me. O acre do meu odor dissipa a lembrança da delicada essência que a define. Nunca mudara de champô, jamais poderia perder a fórmula secreta da sua ingenuidade. O aroma a pêssego…não me esquecerei. Nunca.

A água continua a correr reflectindo o brilho que provém da janela. Os pensamentos também se lançam nos corredores da mente. As paredes incham e globalizam-se no obscuro. Os impulsos esbarram-se contra ideias e ideais, mas dão-se como espezinhados quando a orquídea se apercebe do seu esquecimento irresponsável. A mão fecha a nascente nos noventa graus que o possibilita.

Seguidamente abre a pequena janela que se encontra do lado oposto e o ar torna-se menos pesado com o chilrear dos pássaros. A fotossíntese do gesto troca o corpo pela alma.

Fantasmagórica, decide visitar a cozinha (ouço-a ainda assim), sonda um e outro armário sem encontrar o que deseja. Faz beicinho e carrega o sobrolho. Terá que se enfiar novamente naquele local a que chamam supermercado e que ela prefere apelidar de “mansão ilusória”, onde tudo é falso bem-estar e os bolsos estão lenta e constantemente a serem perfurados. Mesmo assim surge a respiração de uma fome que exige um corpo para viver.

Sai desta divisão e percorre o corredor até à sala, coloca som ambiente e, no bar, prepara dois cocktails de frutas e chama-me para que a acompanhe. Emergem ilhas de sabores corteses e aveludados.

A sala é a divisão oposta ao quarto e junta à casa de banho. Entra novamente nos nossos aposentos e pega nas chaves colocadas em cima da mesinha de cabeceira que se encontra do lado este. Dirige-se à varanda, abre a porta–janela com as chaves, no seu usual tilintar, e deita-se na sua espreguiçadeira, pousando o cocktail no chão. Eu limito-me a admirá-la. Resgato os seus passos sempre e em cada segundo que as suas pálpebras descansam.

1 comentário:

Rogério disse...

Metáforas.

À medida que lemos e desvendamos o véu de metáforas deste conto, acordamos também, junto com seus personagens. Emergimos do sono, compartilhamos as sensações e as pequenas descobertas o amanhecer.

Achar a beleza em atos cotidianos e talvez banais. Esperem: banais não. Acordar ao lado de alguém, redescobrir o Sol, as sensações da manhã ao lado de alguém, não precisa ser banal. E este conto revela isto através de seu manto de metáforas poéticas que nos convida a descobrir as pequenas e preciosas sensações da vida, o conforto de estar refugiado longe da loucura sem sentido lá fora, perto de alguém que torna o cotidiano suportável.

Belo texto.

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