sexta-feira, 12 de outubro de 2007

eles e os outros

Era o fim de uma tarde de Inverno. Eles estavam juntos, numa praia deserta, a ver o pôr do sol.

Andavam sempre escondidos, com medo de serem vistos, com medo das reacções. Enfim...viviam uma vida feliz de infelicidade...

Quando os pais souberam expulsaram-nos, renegaram-nos e agora vivem (ou será melhor dizer sobrevivem?) numa rua de lágrimas, carícias, desabafos naquela praia deserta 2de Inverno...

Vivem da pesca, vivem da chuva, das algas e estão magros, que magros estão! Cara doentia, pálida...quem os vê murmura: "Mais um par que escolheu o caminho da Morte...da Droga...", mas não, a sua única droga é a vida...

Se passeiam em locais públicos, os "grandes" apontam o dedo, os "pequenos" gozam, os mais velhos abanam a cabeça, os cafés fecham-lhes as portas e não conseguem arranjar trabalho fixo.

Mas um dia o sol brilhou e conheceram gente como eles, também assim menosprezados, rejeitados. E formaram um grupo e lutaram e mostraram os seus sentimentos!

A população não escutou, o padre lá da aldeia criticou. E eles eram alvejados com comentários depreciativos, com olhares ameaçadores.

Às vezes, magoados, respondiam. Agora já nem ligam, ambos criaram uma barreira entre "os desiguais" e o "mundo".

O seu objectivo é quebrar essa barreira e com ela a palavra "diferença", afinal o que é a "diferença"? Não seremos nós todos diferentes? Que terão eles mais de diferente que nós?

O grupo foi aumentando e, talvez por isso, baptizado: já não são apenas "os desiguais", são "Os não(In)diferentes"!

Sessões organizadas, assistidas, anunciadas. Protestos realizados, direitos proclamados. Mas sempre, sempre renunciados...

Cartazes criados, uma luta interminável. E agora são ouvidos, com um ouvir de troça. Por vezes defendidos por quem tem algum coração.

Conseguiram apoio, pouco, mas já é alguma coisa. Um apoio que se tornou forte, que se tornou invencível. Um apoio que mudou muitas perspectivas, muitas ideias formadas (a maior parte delas erradas). Um apoio de um comerciante com um coração de ouro, e, quem sabe se os olhos também o não eram...e se fosse um comerciante qualquer! Este era candidato a presidente da junta...

Começaram pelo padre. Se há alguém que toda a gente ouça, toda a gente siga é a ele. Convencendo-o, convence-se a maior parte do povo.

O padre resistiu mas acabou por ceder, agora já podiam assistir à missa, já podem comungar, já podem confessar, mas casamentos não. "É inadmissível!", disse o padre, "De maneira nenhuma!".

O povo escandalizou-se, resmungou, protestou. O padre acalmou-os, explicou, convenceu.

Um pequeno café decidiu aliar-se ao grupo, alugando o estabelecimento para a realização das sessões. Numa dessas sessões um dos pares lembrou-se que poderiam organizar uma palestra com vista a tirarem as possíveis dúvidas que o povo teria. Fez-se uma votação. O voto foi unânime: todos concordaram.

Desta vez não foram precisos cartazes, a mensagem foi transmitida de "boca em boca". Apenas se fixou um aviso na igreja, porque já se sabe, quem conta um conto...

A data marcada foi um Sábado, dia em que ninguém trabalha, também se poderia escolher o Domingo mas é dia santo, toda a gente vai à missa...e, toda a gente sabe, numa aldeia, nem vale a pena fazer concorrência ao padre, o grupo sairia a perder...

Desta vez fizeram sucesso. A maior parte da aldeia apareceu, alguns apenas para gozar (como já é costume), mas pode-se dizer que valeu a pena. Toda a gente saiu esclarecida e com vontade de mudar as suas atitudes. Muitas outras, como esta, foram realizadas, algumas mais satisfatórias que outras. Mas já quase passam despercebidos nas ruas, mesmo assim há sempre alguém a olhar, a cochichar...

Arranjam trabalho tão facilmente como os outros, aqueles outros que, para mim, nem são outros, porque ainda não descobri uma diferença tal que os possa diferenciar, dividir em dois grupos.

Os filhos renegados voltaram a casa, conversaram, dialogaram e reataram os laços familiares, agora mais fortes que nunca.

O grupo já não é formado somente pelos considerados "diferentes", mas também por toda a gente que os apoia, tais como pais, amigos, conhecidos.

Um ano passou, um ano repleto de lutas, um ano repleto de mudanças. Não todas as desejadas...ainda há muita gebte "presa" às Leis de Deus...

O comerciante conseguiu atingir o seu objectivo. Alegando ter ajudado muita gente desprezada, foi eleito presidente.

A barreira que tinha sido construída pelos dois "grupos" começou a ruir aos poucos e poucos, quem sabe se, algum dia, essa barreira desaparecerá...

Mas quem será este grupo misterioso que era, e talvez ainda seja, desprezado, "diferente", que, segundo alguns, não obedecia às Leis de Deus, e, por isso, não se podia casar?

Que pessoas são estas que não podem demonstrar os seus sentimentos em público com receio de serem criticadas? QUEM? PORQUÊ?

Era o fim de uma tarde de Inverno...Eles estavam juntos, numa praia deserta, a ver o pôr do sol. Naquela praia deserta de Inverno...

Outubro 2001

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Este foi o meu primeiro conto. Escrevi-o para participar no concurso "Uma aventura literária", da Caminho.

O tema era "Eu e os outros" e saiu-me isto. Na altura a ideia de as pessoas renegarem os homossexuais irritava-me, por isso passei os meus sentimentos para o papel.

Nos comentários tenham em consideração de que este texto foi escrito há 6 anos atrás, ou seja, eu ainda estava muito verdinha em termos de escrita.

Tenho um carinho muito especial por este texto pois foi com ele que ganhei uma Menção Honrosa, apesar de ter a perfeita noção de que se tivesse de o reescrever muita coisa seria mudada.

Agora as vossas opiniões. :)

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